Tom 'bélico' de alguns líderes evangélicos cria clima propício à intolerância, diz pastor
Na
semana passada, uma série de denúncias de ataques contra membros e
templos de religiões de matriz africana e espíritas tomou a mídia. Em um
dos casos mais graves, uma menina candomblecista de 11 anos foi
agredida a pedradas na saída de um culto no Rio de Janeiro, o que fez
com que o tema da intolerância religiosa voltasse a preocupar lideranças
de diferentes matizes.
Sexta-feira, também no Rio de Janeiro, um
médium foi encontrado morto com sinais de espancamento, em um caso que
ainda não foi esclarecido.
Na opinião de Ed René Kivitz, de 51 anos, que há 26 atua como pastor da Igreja Batista, o momento é de "muita preocupação".
Formado
em Teologia e mestre em Ciências da Religião pela Universidade
Metodista de São Paulo, Kivitz, que integra o movimento Missão Integral -
que congrega diferentes lideranças evangélicas - questiona os
argumentos do que considera como algumas "lideranças extremistas".
Para
ele, o tom bélico assumido por alguns políticos de origem evangélica e
alguns pastores que se utilizam dos meios de comunicação de massa - do
"nós contra eles" - cria um "clima propício para que gente doente,
ignorante, mal esclarecida e mal resolvida dê vazão ao seus impulsos de
violência e de rejeição ao próximo".
Em entrevista à BBC Brasil,
Kivitz se disse a favor dos direitos LGBTs, por entender "que são
cidadãos, independentemente da minha concordância com a orientação
sexual ou a identidade de gênero que eles têm" e contra a redução da
maioridade penal. Sobre o aborto, manifestou-se contrário, mas "a favor
de uma melhor compreensão da legislação em termos de saúde pública e da
preservação da mulher".
O
pastor, que vem se articulando com colegas de diferentes Estados, diz
que "a face evangélica que está exposta para o imaginário coletivo do
brasileiro é a face mais grotesca, mais triste, e que não representa a
índole da Igreja Evangélica brasileira".
Com seu trabalho, ele diz buscar espaço para mostrar um lado mais "ponderado, inclusivo e progressista" dos evangélicos.
Veja os principais trechos da entrevista:
BBC
Brasil - Como membro da Igreja Batista, como o senhor vê os casos
recentes de intolerância religiosa ocorridos no Rio de Janeiro? É algo
que preocupa? Na sua visão, como os líderes evangélicos deveriam se
posicionar?
Ed René Kivitz - Me preocupo
muito com a questão da intolerância religiosa sim, embora eu ache que
no Brasil isso seja muito localizado, e faça parte de um momento, de um
recorte de tempo muito específico que estamos vivendo. Não faz parte da
índole do povo brasileiro, e nem da índole cristã, quer seja católica ou
evangélica, e evidentemente não faz parte da índole do Evangelho.
Eu
acho que é algo isolado, mas preocupante também para a imagem da Igreja
Evangélica, que está sofrendo muito por conta dessas lideranças
radicais que estão construindo no imaginário da sociedade brasileira uma
ideia do ser evangélico que não corresponde à grande parcela da nossa
população que se identifica como evangélica.
BBC Brasil - Críticos
argumentam que estas lideranças evangélicas que defendem de forma mais
acirrada sua agenda moral estariam alimentando um "discurso de ódio" no
país. Embora não se possa afirmar isto, o senhor acredita que pessoas
com maior tendência à intolerância religiosa possam estar encontrando
amparo nestas posições, ao verem figuras influentes no cenário nacional
mantendo uma ideologia de confronto e não de conciliação com relação a
grupos com visões diferentes, sejam estes grupos de outras religiões,
LGBTs, defensores do aborto, minorias, etc?
Kivitz -
É preocupante ter uma liderança expressiva desenvolvendo um discurso de
"nós contra eles", um verdadeiro contrassenso para uma liderança
religiosa, já que não se tolera isso nem de uma torcida organizada de
futebol, que dirá de uma figura tida como um orientador, um guia
espiritual.
Quando você encontra uma liderança com este discurso,
você cria um ambiente propício para que gente doente, ignorante, mal
esclarecida e mal resolvida dê vazão ao seus impulsos de violência, de
rejeição ao próximo, aos seus ímpetos de prepotência, à sua ambição e
sede de poder, à sua personalidade opressiva.
Enfim, não é
difícil, quando você cria este ambiente bélico, que pessoas extremadas
se sintam legitimadas para os seus atos inadmissíveis. Eu acho que é
isso que está acontecendo no nosso país, e acho que infelizmente deve-se
fazer este registro que não são os líderes religiosos que incitam ao
ódio. Essa expressão é abominável, ela precisa ser riscada do nossos
textos. Não é possível que um líder religioso, em sã consciência, esteja
incitando o ódio, isso é um tiro no pé.
Mas sim, um discurso
bélico, um discurso de confronto, no lugar de um discurso de
reconciliação, cria, de fato, um ambiente onde as manifestações
violentas tendem a ser legitimadas, ainda que isso seja inconcebível.
BBC
Brasil - Sobre os casos ocorridos no Rio de Janeiro, o senhor tem algum
posicionamento específico? A menina atacada com pedradas deveria ter
sido recebida por mais líderes evangélicos, por exemplo, e não só pelo
arcebispo da Igreja Católica e pelo prefeito Eduardo Paes?
Kivitz -
Eu recebi a informação de que o pastor da Igreja Batista da Vila da
Penha, na Zona Norte do Rio, cancelou as atividades no domingo e
encorajou os fiéis a participarem de uma marcha a favor da tolerância
religiosa.
O que eu acho é que nós deveríamos dar mais destaque,
na mídia, para essas iniciativas de paz e de aproximação. Eu não estou
dizendo que deveríamos ocultar os fatos, mas sim que a imprensa deveria
dar menos linhas para os fatos ruins e mais linhas para os atos que
buscam construir uma sociedade melhor. Outro grupo evangélico do Rio se
uniu recentemente para ajudar na reconstrução de um centro de religiões
africanas que havia sido queimado por grupos intolerantes, algo pouco
noticiado, por exemplo.
BBC Brasil - Caso este momento de
tensão continue se expandindo no Brasil, com a atuação da bancada
evangélica no Congresso, embates de líderes religiosos com figuras da
mídia e grupos LGBT, e discussões polêmicas como a criminalização da
homofobia, liberação do aborto e redução da maioridade penal, como o
senhor avalia as chances de um maior diálogo a curto e longo prazos?
Kivitz -
Para termos um país que possa se considerar legitimamente democrático e
republicano, temos que fortalecer tanto as nossas instituições
políticas como a participação popular. Temos que valorizar os movimentos
sociais, aplicar a lei com vigor a todo ato criminoso, de qualquer
natureza e praticado por quem quer que seja. Acho crucial que exista
também um estado de alerta na sociedade brasileira, que se levante
contra todo e qualquer grupo que pretenda um controle hegemônico.
Quando
eu digo um controle hegemônico, quero dizer que uma sociedade se
constrói dando vez e voz a todas as formas de expressão de crenças, de
culturas, de interesses de grupo. Você não pode permitir que a bancada
evangélica seja hegemônica no Congresso, da mesma forma que você não
pode permitir que a bancada do PT seja hegemônica. Nós não queremos um
país governado por um grupo, por uma cultura ou por uma crença. Nós não
queremos um país controlado por uma maioria muçulmana, mas também não
queremos um país governado por uma maioria evangélica.
É
nisso que eu acho que no Brasil ainda não amadureceu. As pessoas não
entendem que quando um deputado evangélico chega à Câmara em Brasília,
ele deveria deixar de ser evangélico e se tornar um defensor da
cidadania. Claro que ele tem todos os seus valores, convicções
religiosas e opções ideológicas, mas ele não está lá para defender a
cabeça dele, nem o segmento da sociedade que o colocou lá.
Quando
você tem uma sociedade em que um grupo pretende tomar de assalto a voz
de todos e impor a sua agenda sobre todos, isso não é uma sociedade
democrática, mas sim uma ditadura conquistada no voto. Então a gente tem
que bater forte em todo grupo que se pretenda hegemônico, seja ele
político, religioso, ou qual for. Inclusive a militância LGBT, que tem
que compreender que tem seus direitos, e quem não concorda com ela
também tem seus direitos, isso é democracia.
BBC Brasil -
Diante dos seus argumentos é inevitável questioná-lo sobre os
posicionamentos do atual presidente da Câmara, o deputado federal
Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que vem protagonizando debates e encampando
abertamente a defesa de temas, ao afirmar que a discussão sobre o aborto
só ocorreria "sobre seu cadáver" e colocando-se contrário ao casamento
gay e a favor da redução da maioridade penal, além de divulgar
abertamente sua "agenda da família", conjunto de valores morais base de
sua campanha. Como o senhor avalia a influência de um presidente de um
Parlamento democrático com estes posicionamentos num país tão polarizado
como o Brasil neste momento?
Kivitz -
Em vista de tudo que falei anteriormente, este tipo de posicionamento
jamais deveria ocorrer, e não coopera em nada com o amadurecimento de
uma sociedade democrática.
O voto não é o caminho para que a
vontade da maioria se sobreponha à da minoria. O voto deveria ser o
exercício do cidadão em discernir o que é melhor para o todo da
sociedade, e não para fazer valer o seu ponto de vista sobre esta
sociedade.
É este amadurecimento democrático que nós no Brasil
ainda não temos e que os nossos líderes políticos não cooperam em nada
para desenvolver. Ou seja, eu não posso votar num candidato apenas
levando em conta se sou contra ou a favor do aborto, mas sim pensando no
que seria um posicionamento justo para a sociedade brasileira com
relação à legislação que trata do aborto.
Ao insistir em defender o
ponto de vista do seu grupo, você fica num cabo de guerra constante, um
puxando para um lado, e o outro puxando para o outro, e não se chega a
lugar nenhum, perpetuando-se a relação "nós contra eles".
Quando
você tem um presidente do Parlamento tentando impor sobre a sociedade o
seu ponto de vista e o ponto de vista do seu grupo, ele não tem índole
democrática. Ele não está pensando no bem da sociedade, mas sim apenas
na vitória da sua ideologia ou da sua convicção religiosa. Isso
contraria inclusive a origem e a história do Protestantismo, que nasce
com a defesa da liberdade de consciência, da separação entre Igreja e
Estado, a valorização dos direitos individuais, e a luta pela liberdade
de expressão. É muito triste ver um líder religioso completamente
dissociado do movimento que lhe dá respaldo.
Em outras palavras,
essas lideranças evangélicas que estão presentes na mídia e no cenário
político brasileiros merecem a hashtag #nãomerepresentam.
BBC
Brasil - Neste processo, é possível competir com lideranças evangélicas
que compram espaços de emissoras de televisão, o meio de comunicação
que ainda exerce maior influência de massa sobre a população brasileira?
Kivitz -
A TV no Brasil, de forma geral, ainda se preocupa muito mais com o
circo, o sensacional, os embates e os extremos, do que com o diálogo e a
discussão construtiva. A mídia tem um papel muito forte nisso. Os
movimentos LGBT, por exemplo, são pintados sempre como mocinhos, e os
evangélicos todos demonizados como homofóbicos, o que é uma inverdade.
Há evangélicos a favor desses direitos, e há extremistas dos dois lados
do debate. Mas para o circo da mídia não interessa colocar gente
moderada dos dois lados conversando. A face evangélica que está exposta
para o imaginário coletivo do brasileiro é a face mais grotesca, mais
triste, e que não representa a índole da igreja evangélica brasileira,
com a mais absoluta certeza.
Quanto ao espaço comprado por
lideranças extremistas, é uma arma poderosa e uma luta desigual, porque
estes espaços custam milhões e sabe-se que para conseguir estes milhões,
essas lideranças com flexibilidade ética e moral conseguem mais fácil
do que aqueles que têm uma consciência moral e respeitosa não só aos
seus princípios religiosos e espirituais, como também à massa e à
população brasileira.
BBC Brasil - O que podemos esperar a
médio e longo prazos deste cenário atual no país? Que papel outras
lideranças evangélicas podem assumir neste debate?
Kivitz -
Eu gostaria de sublinhar que a liderança evangélica que me representa é
uma minoria também. Quando eu ouço as minorias lutando pelos seus
direitos e mais respeito às suas vozes, eu me identifico. Sejam os
movimentos dos negros, dos LGBTs, das mulheres, dos trabalhadores
sem-terra.
Eu também sou uma liderança evangélica que precisa
lutar por reconhecimento e espaço, e que muitas vezes sequer é ouvida
pela sociedade, como se a Igreja Evangélica fosse uma coisa só, esta
coisa apresentada pelos extremistas.
E aí nós fazemos um barulho
que, perto dessa estratégica de massa dos radicais, é pequeno, mas ele
existe. Por exemplo, nós estamos nos mobilizando contra a redução da
maioridade penal, contra o trabalho escravo, pela valorização da
criança. Existe uma Igreja Evangélica diferente aí, trabalhando pela
sociedade. E há igrejas evangélicas que são uma poderosa ferramenta de
transformação social nas periferias de todo o Brasil, isto também
precisa ser lembrado.
Fonte: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/06/150622_entrevista_pastor_pai_jp>. Acesso: 24/06/2015.
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